Esperança e Decepção
Fazia vários anos seguidos que não chovia no Vale do Cariri. Seu Zé viu a sua última rês morrendo a míngua. Chamou sua mulher e desabafou:
_ Catarina, que será de nós, neste inferno seco? Não nos resta mais nenhuma vaquinha, até a malhada acabou de bater os cascos.
_ É Zé, bem que o Padim Ciço já dizia que a salvação do nordeste está na Bandeira Verde, nas beiras do Grande Rio.
_ Quer dizer que nós temos de abandonar nossa terrinha e desandar pelo mundo afora?
_ E temos outra escolha, se não queremos além dos animais, ver o nosso Mundinho (Raimundo) e até nós mesmos morrer de fome e de sede?
E foi assim que resolveram sair atrás da terra prometida, a Bandeira Verde, o grande Rio Tocantins. Juntaram os cacarecos, trocaram à terrinha, a casa e o pouco mais que restava por um velho calhambeque, despediram-se dos amigos e às três da madrugada bem antes do arrebol, enquanto tudo dormia, ligaram o motor e saíram estrada afora.
Adeus Vale do Cariri, adeus torrão Natal, torçam por nós para que possamos frutificar aonde o bom Deus vai nos levar. A fantasia galopava junto ao roncar do motor e mil saudades flutuavam com a poeira da estrada. É tão triste a partida, é como arrancar um pedaço da gente. Um choraminga num canto, um segundo sua o nariz disfarçando, o terceiro enxuga as lágrimas que terminam de cair. O cachorro com a cabeça entre as pernas da criança partilha da dor geral, até o papagaio falador está todo encorujado. O calhambeque está levando tudo que pode ser útil na viagem e na futura Canaã. São grandes as esperanças que levavam consigo, afinal existe a promessa do Padre Cícero que na beira do grande rio existe fartura. Percorreram o Piauí, quantas carcaças espalhando desolação. Graças a Deus estavam fugindo daquele inferno seco. Somente o mandacaru tem a força para desafiar a estiagem de vários anos.
Atravessado o Parnaíba, estavam finalmente no Maranhão. Este estado já tem melhor aspecto, aqui a mãe natureza é menos madrasta. Os campos estão bem mais verdes, não existe mais sinal de morte presente, nem centenas de esqueletos espalhando assombração pela imensidão.
Seu Zé esboçou um sorriso, dona Catarina arriscou um palpite: “Deus está nos protegendo e Padim Ciço nos guia passo a passo”. Rodaram o dia todo, passaram por cidades e corrutelas; finalmente estavam admirando o Rio Tocantins, realmente era um grande rio. Acamparam, afinal fazia vários dias que tinham deixado o Ceará, a terra abençoada de Iracema, a virgem dos lábios de mel; do Padim Ciço, o profeta de Juazeiro. A Bandeira Verde estava bem ali, encantando os retirantes que não cansavam de admirar a fartura das águas e o verde das matas.
Arrancharam-se finalmente. Seu Zé indagava junto aos habitantes, procurava conhecer as possibilidades que ele teria neste lugar. Dona Catarina ia à igreja, fazia amizade com as beatas do lugar e o Mundinho corria feliz pela rua poeirenta ou lamacenta, dependendo do humor do tempo, e, não cansava de banhar com o inseparável cachorro. Parecia ser realmente o paraíso procurado, chegava a fazer pequenos fretes com seu calhambeque. Dir-se-ia até ser aqui a nova Canaã.
Conversa vai, conversa vem e alguém tenta convencê-lo que a Bandeira Verde está alem do rio Tocantins, nas margens do rio Araguaia. Trocaram o velho carro por uma tropa de animais de carga encangalhados com jacás e tudo mais, atravessaram o Tocantins e partiram novamente se embrenhando mata adentro atrás da sonhada Bandeira Verde.
O caminho que tantos romeiros seguiam era o picadeiro deixado pelos índios. Depois de dois dias de caminhada chegaram a um povoado e foram recebidos com cordialidade. Permaneceram ali por alguns dias enquanto seu Zé seguiu adiante, a fim de procurar um lugar onde pudessem instalar-se com a Catarina e o Mundinho.
Até que enfim encontrou um sem defeitos, lugar de terra preta e água sem parar. Decidiu-se, ser ali mesmo o lugar para fincar morada. Limpou uma boa eira, enfiou quatro estacas, fez um rancho provisório e voltou para buscar a família. O astral era bem diferente, já tinha onde pousar e um pedaço de mata, a Bandeira Verde tão sonhada.
Agosto o mês da derrubada, setembro com suas plantações, outubro começam as chuvas, novembro a espera ansiosa. Que beleza! Todas as plantações estão correspondendo à expectativa. Realmente valeu a pena trabalhar, tudo que plantou vingou, a terra retribuía com fartura.
Chegou dezembro com suas chuvas; janeiro, mais chuvas ainda e o arrozal começou a produzir. Fevereiro abriu uma estiagem, com as mãos ágeis conseguiu fazer plena colheita. E veio março, todas as cataratas do céu se abriram. Quanta água, meu Deus! Foi um mês muito cruel, deu uma enchente de matar sapos. Todas as baixadas encheram-se, tudo ao redor parecia um mar de água. Com o passar dos dias, diminuiu a chuvarada, retornou a mata verde ainda mais verde, pois criou-se um lodo esverdeado até nas águas paradas. Agora sim, parecia realmente uma bandeira verde, que maravilha! Porém as águas estagnadas trouxeram o danado do pernilongo, por eles ainda desconhecido.
Feliz pela boa colheita carregou os burros e levou as primícias para vender no povoado. Dona Catarina já esperando o segundo filho, desejou-lhe boa sorte na viagem, o Mundinho deu-lhe um forte abraço e um beijo filial e o cachorro o acompanhou. Chegou finalmente ao destino oferecendo sua farta colheita, mas ninguém interessou por ela. Foi pego por um desespero geral, um desânimo tomou conta dele. E agora o que fazer? Precisavam de roupas, remédios e tudo mais, além do enxoval do bebê que estava pra nascer. Voltar com a carga, não era absolutamente possível. Foi ali que um intermediário fez-lhe a proposta: “deixa comigo, eu ti arrumo fiado, a mercadoria que precisas e quando eu vender o teu arroz, a gente acerta. Era assinar a carta em branco, porém seu Zé não tinha outra saída; assim cabisbaixo descarregou a tropa do arroz e recarregou com a mercadoria que havia adquirido em confiança, entrando num emaranhado do qual nunca mais irá sair.
E veio a colheita de bananas, cada cacho rechonchudo, uma verdadeira fartura. Encheu os jacás e saiu mais animado. Desta vez iria conseguir fazer um bom negócio. Chegou ao povoado todo sorridente, mas teve que passar pela mesma humilhação. O único a bancar o benfeitor foi aquele atravessador que novamente se propôs a receber a carga de bananas e ceder fiado mais mercadorias do armazém, não sem antes por mil e um defeitos nas frutas. O cearense deu vontade de esganá-lo e sair correndo, entretanto havia a sua Catarina, agora com os dois pimpolhos, não podia mesmo esmorecer. Cedeu a carga, aumentou a dívida e voltou outra vez humilhado e cabisbaixo. De retorno ao rancho um calafrio invade os seus ossos. É a malvada malária que o atacou, do tipo mais bravo que existe. Foi uma febre fulminante que o estava levando e em poucos dias sua alma voou para Deus, deixando Catarina desnorteada com os dois pequenos. Logo que chegou ao povoado a noticia da morte do Zé Cearense, o tal comerciante apareceu exigindo o pagamento da mercadoria cedida em fiança. Não encontrando outra coisa ficou com o sítio, a tropa e o mais que podia juntar.
A viúva voltou com os dois filhinhos e o cachorro até ao povoado. Ali deixou o maiorzinho tomando conta do pequeno e sujeitou-se a lavar roupas nas casas dos Maiorais, até conseguir voltar ao Vale do Cariri e tentar sobreviver como faz o mandacaru. A mata tornou-se um pesadelo, pois sepultou o que havia de mais sagrado em sua vida, o seu verdadeiro amor. O enorme inferno verde pode até ser esperança para quem chega nele prevenido, porém, para Catarina esta imensidão de cor esmeralda tornou-se causa de desespero e a maior decepção de sua vida. Bandeira Verde: Esperança e decepção.
Chora triste o coração vendo o pobre ser pisado
Cada vez sem solução frente ao lar desmantelado
É preciso nessa hora muita calma e muita fé
Aja firme e sem demora seja lá quem você é
Nunca espere compaixão de quem só vive a lucrar
O comércio é exploração é difícil o fartar