Quem bate esquece

 

 

                                                                                         Vida humana é inviolável

                                                                                         Ninguém deve a outro matar

                                                                                         A vingança é condenável

                                                                                        Quem perdoa sabe amar

 

            Na redondeza nossa juventude sempre inventa um arrasta pé. Aconteceu que numa destas festinhas, lá pelas tantas da madrugada dois jovens se estranharam somente por causa de uma moça. Como acontece com todos os varões ninguém quer parecer menor, todos ambicionam agradar às damas e demonstrar coragem e força. Os dois já estavam meio dominados pelo licor que faz os fracos se exaltarem, ali um deu uma bofetada no rosto do companheiro. Quem apanhou não revidou, só disse: “Vai te custar caro este tapa” e foi para casa. Este que apanhou era açougueiro e fingiu esquecer o incidente. No comércio dele sempre reunia toda a redondeza quando matava uma rês. Contavam-se muitas aventuras, sobre tudo com caçadores de índios.

            _Nesta semana, disse um, o Miguelzão tem derrubado com a sua garrucha, vários índios que rodeavam as nossas terras.

            _Bem feito, uns a menos para roubar o nosso gado, completou outro.

            _Fazia dó vendo como eles gemiam morrendo; dialogou o primeiro

            _Que dó que nada! Onde se viu ter dó de gente ruim? Falou o açougueiro.

            Nesse intervalo chegou também o que tinha batido no rosto do açougueiro, e, este vendo o chamou na frente de todos e cedendo-lhe a melhor parte do gado, disse-lhe: _ leva, guardei esta especialmente para você. Em seguida comentou:_ sabem que quando eu tenho um leitão para matar, gosto de cevá-lo bem.

            Outra semana nova matança de gado, novo agrupamento de fregueses, novos comentários. Sabe, parece que os índios ficaram assanhados com a matança dos companheiros, foram vistos rondando nossas casas atirando flechas. Graças a Deus não atingiu nenhum cristão.

            Um jovem que esteve calado até então, contou as façanhas de um caçador que matou uma onça, isto, graças a ousadia dos cachorros que a acuaram e atacaram em matilha. Enfim, chegou também o companheiro de briga do açougueiro; ao vê-lo o marchante deu-lhe um bom pedaço que havia posto de lado e: sabe que eu trato bem os meus porcos de engorda, falou, passando os bifes para a sua mão.

            Todos acharam graça e o beneficiado levou a melhor carne, saindo satisfeito.

            Isto se repetiu muitas e muitas vezes, até que um certo dia, o céu estava plúmbeo, em pleno mês de março, soprava um vento gélido e sinistro preanunciando tragédia.   O amigo do açougueiro chegou para comprar a carne bem cedinho. O marchante estava amolando as facas, que já cortavam igual às navalhas.

            Ao vê-lo disse: _ vem mais perto, que eu quero ver se já estás bem cevado. Começou a palpá-lo, então o rapaz foi ficando nervoso e: _ O que é isto? O que estás fazendo?

            O açougueiro com os olhos vermelhos, cuspindo raiva: _ Te lembras daquela noite, naquele baile que você me bateu?

            _ Eu te bati? Quando foi isso?

            _ Ah! Quem bate sempre esquece, mas quem apanha não esquece, e enfiando a faca degolou o rapaz e exclamou: _ É assim que eu mato os meus porcos cevados.

            Os curiosos foram chegando e juntou muita gente, todos comentavam o fato , alguns aplaudindo; pois homem que é homem não bate na cara, que mamãe beijou, impunemente; outros condenavam a frieza e a barbaridade da vingança. Afinal um tapa nada mais é que um tapa, por que tanta crueldade?

            Fato está que foi assim que morreu o valentão esquecido, cevado pelo seu próprio algoz, enquanto uma chuva torrencial desabava sobre esse povoado, embrenhado nas matas do então interior Norte Goiano, lavando o sangue derramado por um jovem retirante. O açougueiro escapuliu de fininho, largando tudo nas mãos dos irmãos. Ninguém mais soube do paradeiro dele, mas tenho certeza que a sua consciência nunca mais terá paz.

                                    Quanta selvageria acontece

                                    Se não correr nas veias o perdão

                                    Com a vingança tudo estremece

                                    Se não souber controlar a paixão

 

                                    Com tal requinte e fria crueldade

                                    Vem de um alguém sem civilização

                                    Demonstra muito cálculo e maldade

                                    Um ser assim, não pode ser cristão

 

                                    Toda paixão nos leva ao mau caminho

                                    Quem não pensa,  para  raciocinar

                                    Destrói o lar, sem saber o que é carinho

 

                                    Desiludida a humanidade implora:

                                 Pela paixão não se deixe levar

                                   O que se faz, retorna a nós na hora

 

                                                             Angelo Bruno